
A Memo está desenvolvendo um projeto de reforma de uma cobertura de 800 m2 no conjunto residencial Casa Alta, projetado por Sérgio Bernardes e construído em 1963. Eu já conhecia um pouco do projeto, mas nunca havia me atentado a tamanha ousadia — que considero pouco exaltada por analistas da arquitetura moderna brasileira, proporcionalmente ao seu porte e ao vanguardismo que apresenta.
Perspectiva original cedida pelo arquivo de Sérgio Bernardes, sob tutela do NPD (Núcleo de Pesquisa e Documentação) da UFRJ.
O empreendimento alia racionalidade técnica, liberdade espacial e sensibilidade urbana. Situado em um contexto histórico de verticalização crescente, implantado no Morro do Pasmado, debruçado sobre a praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, ele se destaca pela proposta ousada de promover uma arquitetura aberta, adaptável e profundamente conectada ao estilo de vida de hoje — não de sua época. Sua forma racionalista é forte e numa primeira análise superficial já se percebe que foi desenhado para aproveitar o visual deslumbrante do Rio visto em 360o.
Perspectiva original cedida pelo arquivo de Sérgio Bernardes, sob tutela do NPD (Núcleo de Pesquisa e Documentação) da UFRJ.
Estrutura como base para a liberdade
Um dos aspectos mais notáveis do projeto Casa Alta é seu sistema estrutural independente. A adoção de uma estrutura em grelha modular (~1 metro), externa, com pilares metálicos formados por dois perfis de seção “L” e vigas pequenas que vão de uma fachada à outra, dispensou pilares internos, núcleos estruturais ou paredes portantes. Já o uso de laje rebaixada e um piso cimentício elevado, conjugado a uma espécie de grande shaft horizontal para a canalização das instalações, libertou as plantas baixas. Essa escolha técnica abre um leque de possibilidades para a configuração dos pavimentos, permitindo uma variedade de tipologias enorme, além de uma liberdade incrível nos interiores.
Planta baixa Tipo (modular) original cedida pelo arquivo de Sérgio Bernardes, sob tutela do NPD (Núcleo de Pesquisa e Documentação) da UFRJ.
Graças à ausência de interferências nas divisões internas, cada unidade pode ser concebida com ampla liberdade de layout — até mesmo nas áreas molhadas. O edifício assume, assim, uma postura de neutralidade programática: sua forma e sua técnica abrem espaço para usos diversos, mudanças ao longo do tempo e adaptações segundo os desejos de seus ocupantes.
Fachadas e plantas livres: a arquitetura como palco da individualidade
A proposta de fachadas livres e plantas moduláveis transforma o Casa Alta num organismo vivo, em constante mutação. As fachadas refletem a identidade de cada morador, já que elementos como caixilhos, brises e vedações podem ser dispostos de forma personalizada. Esse jogo entre padronização estrutural e liberdade formal cria um edifício de aparência mutante, onde a coletividade se afirma justamente pela expressão individual de seus integrantes. É possível até identificar um paralelo entre a cultura da autoconstrução brasileira e o partido adotado — tamanha é a profundidade do que foi desenhado.
Fachada principal original cedida pelo arquivo de Sérgio Bernardes, sob tutela do NPD (Núcleo de Pesquisa e Documentação) da UFRJ.
Assim, o produto permite desde lofts integrados até configurações familiares mais tradicionais. Essa flexibilidade é especialmente valorizada no mercado atual, onde as demandas por moradia são cada vez mais plurais e dinâmicas.
É curioso pensar na ousadia — não só do arquiteto, que é conhecido como um personagem inventivo, mas também do incorporador, que enfrentou o desafio de executar um projeto de tamanha complexidade construtiva e lançar um produto tão flexível para a época. Penso que falta esse tipo de ousadia no mercado imobiliário atualmente.
Perspectiva original cedida pelo arquivo de Sérgio Bernardes, sob tutela do NPD (Núcleo de Pesquisa e Documentação) da UFRJ.
O projeto Casa Alta, de Sérgio Bernardes, é um manifesto em favor da arquitetura como suporte para a vida. Ao libertar a planta e a fachada por meio de uma estrutura racional e eficiente, Bernardes antecipou debates contemporâneos sobre flexibilidade, personalização e sustentabilidade urbana. A reforma de uma unidade neste edifício representa, portanto, não apenas uma intervenção pontual, mas a continuidade de um pensamento arquitetônico vigoroso, vanguardista, visionário, atual e inspirador para o nosso mercado.